O que a sociolingüística estuda
No curso Introdução aos Estudos Lingüísticos,
vocês aprenderam que a
lingüística faz interfaces com várias outras
ciências. Este curso vai tratar da
língua em suas relações com a sociedade.
A disciplina se chama
sociolinguística
porque estuda a língua como um fenômeno social.
Quando vocês estudaram Saussure, vocês
aprenderam que Saussure
acreditava que a língua não pertencia aos
indivíduos, mas que era um
fenômeno social, de todo o grupo. Leiam
o que Saussure disse sobre a língua:
"Ela é a parte social da linguagem,
exterior ao indivíduo [...]; ela não existe
senão em virtude duma espécie de contrato
estabelecido entre os membros da
comunidade". Vocês podem achar, então,
que a sociolingüística teria sido
fundada por Saussure. Mas isso não aconteceu.
Saussure não estava
interessado nas relações entre a língua e a
sociedade. Ele estava interessado
nas relações internas da língua entre
os signos lingüísticos. Para Saussure, a
língua é uma complexa estrutura de distinções
entre elementos lingüísticos:
fonemas, morfemas, e palavras.
Para poder estudar essa estrutura, Saussure
precisava imaginar que a língua
de uma comunidade fosse uma coisa mais estável
do que a fala de qualquer
membro da comunidade. A fala dos
indivíduos pode variar, pode até ter
"erros", e pode falhar, mas a língua
é um sistema abstrato de relações,
completo e unificado, e não pode ter erros, e
nem falhas.
Para manter essa idéia de que a língua era um
sistema só, sem variações, ele
insistia que a lingüística tinha que estudar a
língua parada no tempo. Quer
dizer, para ver a ordem dentro da língua, você
tinha que tirar uma fotografia
dela num instante de tempo. Porque Saussure
insistia nesta sincronia?
Porque os filólogos, os professores que
estudavam as línguas até então, já
sabiam que as línguas mudam com o
tempo, e que elas sofrem influências
umas das outras. Saussure também sabia desses
fatos, mas imaginava que
essa variação era só uma questão de tempo. Ele
acreditava que em qualquer
instante, você poderia estudar a língua como
ela é naquele instante, sem se
preocupar com a variação que aparece na fala
das pessoas, e sem se
preocupar com a variação que aparece se
comparar a mesma língua em
épocas diferentes.
Chomsky adotou uma atitude muito parecida. Ele
estava interessado em
descobrir a estrutura da gramática
universal, que ele acreditava ser inata. Ele
acreditava que só tinha uma maneira de
descobrir a estrutura básica de todas
as línguas (a gramática universal): estudar o conhecimento
intuitivo que as
pessoas têm da sua língua materna. Esse
conhecimento ele chamava
competência, e acreditava que era estável, diferente da performance de
um
falante (seu jeito de falar), que pode variar
de um momento para outro.
Chomsky localiza esse conhecimento no cérebro
do indivíduo, e não na
sociedade, como Saussure, mas o efeito é o
mesmo. Os dois acreditavam que
as línguas eram suficientemente estáveis para
permitir que fossem descritas
como sistemas perfeitos e invariáveis.
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Essas teorias foram muito úteis para
investigar as estruturas das línguas. Mas
para isso, elas tinham que idealizar a
língua, e imaginar uma coisa parada no
tempo, que não variava entre um falante e
outro, e nem entre uma ocasião de
uso e outra. Essa idealização do objeto
de estudo é muito comum em todas
as ciências.
Mas é importante lembrar que essa visão da
língua é uma idealização, e não
um fato. Os fatos das línguas apontam para
outro conceito: nas línguas, a
variação está por toda parte.
O primeiro tipo de variação que notamos é que
existem muitas línguas
diferentes no mundo. A língua não é uma coisa só. Ela pode tomar formas
muito diferentes. A grande diferença entre as
línguas os antigos filólogos já
conheciam. Mas existe também muita variação dentro
de cada língua, o tempo
todo, e
essa variação é um fenômeno perfeitamente normal e extremamente
útil. Essa variação dentro de cada língua os
antigos filólogos quase não
reconheciam. Era mais fácil reconhecer
variação entre as línguas do que
variação dentro das línguas. Por quê?
Isso acontecia porque antigamente quem
estudava as línguas estudava textos
escritos, tanto das línguas "vivas", como francês ou inglês ou
português,
quanto de línguas "mortas", como
latim, ou grego ou sânscrito. A língua escrita
é mais fácil estudar, porque ela fica parada
no papel. Você pode ler e reler e
voltar a estudar novamente. É assim que
descobriram que as línguas mudam
através dos séculos: comparavam a forma de
escrever em 1800 com a forma
de escrever a mesma língua em 1500 e viam que
eram diferentes. Mas em
cada época, a maneira de usar a língua na
escrita era bastante padronizada,
comparada com a fala. Os textos eram
geralmente escritos por homens
adultos cultos das classes mais favorecidas, e geralmente sobre determinados
assuntos. Os textos não retratavam a variedade
de usos que as pessoas
comuns faziam da língua no seu dia-a-dia.1
Era muito difícil estudar a língua como ela é
usada na forma falada, no uso de
todo dia, porque ela não é fixa. Ela some da
memória em poucos instantes. É
quase impossível lembrar exatamente como
uma coisa foi dita. Nós
lembramos o sentido mas não exatamente a
forma. Isso só começou a mudar
a partir da invenção do gravador (e depois, da
filmadora). Hoje em dia é fácil
gravar a língua em uso e ter um registro que
pode ser estudado com tanto
cuidado e rigor quanto qualquer texto escrito.
A sociolingüística e o estudo da
variação lingüística dependem da tecnologia de
gravação.
Outro motivo de reconhecer mais facilmente a
variação entre as línguas do que
a variação dentro das línguas é que as
variações entre as línguas podem ser
muito grandes. Duas línguas podem parecer completamente
diferentes uma da
outra. Diferentemente, a variação dentro de
uma mesma língua pode ser mais
sutil, e pode passar despercebida.
Muitas vezes, nem notamos as variações.
1 Existem importantes exceções. O livro Os
Contos da Cantuária, escrito em inglês no século
XIV, imita regionalismos e particularidades da
fala dos contadores das histórias.
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Ou melhor: notamos as variações inconscientemente,
mas não
conscientemente!
A sociolingüística estuda a língua em toda a
sua variedade. Ela considera a
variação lingüística um fato que deve ser
explicada: Quais são as formas de
variação? Quais são as causas da variação?
Quais são as funções de tanta
variação nas línguas? Qual é a relação entre essa variedade e o
uso social?
Fonte: Curso de Licenciatura em Letras-Libras
2007 - UFSC
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