sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Saussure: Uma filosofia da linguística?


1. UMA FILOSOFIA?

Algumas vezes Saussure definiu sua reflexão como uma filosofia da Linguística. Em uma conversa com Riedlinguer, seu aluno nos cursos ministrados em Genebra, conforme Bouquet (2002:76) retoma tal como observamos: “Saussure tratará este ano das línguas indo-européias e dos problemas que colocam. Isso será uma preparação para um curso filosófico de Linguística”. Aparentemente, o professor denominava seu ensino de filosófico, mas o que ele tinha em mente ao falar de uma dimensão filosófica da Linguística em 1910? Essa denominação é comum nessa época. No século XIX os estudos estavam sob o rótulo de filosóficos, tínhamos a “filosofia da botânica”, a “filosofia da química”, a “filosofia da história”, entre tantas outras. O termo se aplicava a qualquer saber que contivesse princípios universais ou fundamentais acerca de uma arte ou ciência. Apenas no fim do século XIX que se iniciou um conceito mais delimitado do termo com o nascimento da Epistemologia. Será que podemos dizer que Saussure tratou de uma epistemologia da Linguística? A Epistemologia pode ser entendida como um estudo da origem, natureza ou limites do conhecimento de uma ciência, um “estudo da ciência”. O termo remete a Platão, que visava questionar “o que é o conhecimento” e “como podemos alcançá-lo”. Duas posições surgem desse questionamento: o empirismo e o racionalismo. Ou seja, o conhecimento é baseado na experiência, ou ele tem suas origens na razão humana. Podemos reconhecer na reflexão saussuriana uma preocupação com a natureza e os limites do conhecimento da linguagem. Saussure desenhou, desse ponto de vista, uma visão filosófica da linguagem e da língua. Porém, o estudo de Saussure sobre a língua e a linguagem apresenta, em seus limites e natureza, um saber negativo, não-positivo. Os construtos teóricos em que Saussure edifica sua reflexão da língua como um sistema de signos repousam numa natureza absolutamente negativa. O termo ciência hoje nos remete a um saber positivo e invariavelmente empírico. Isto envolve a manipulação do objeto, e a formulação matematizada de leis que permitem observar este objeto. Desse modo o objeto é dado de antemão, graças à verificação empírica os conceitos são fixados a posteriore. Mas o saber com que Saussure lidava, o saber nãopositivo, lida com conceitos primitivos, ou seja, “o ponto de vista que cria o objeto” nesse caso, não há um objeto estabelecido antes dos conceitos formulados. Desse modo, o objeto não é diretamente observável ou demonstrável empiricamente, é uma abstração imposta, uma escolha metodológica ou filosófica mesmo, no sentido de que se escolhe um modo de olhar para o objeto que o cria, que “faz a coisa” surgir. Os dados são construídos a partir de hipóteses e não de uma manipulação empírica do objeto em questão. Resultando em uma problematização sempre atualizada dos conceitos postulados e numa dificuldade de atingir uma verdade que pode ser reproduzida em dados empíricos. Os conceitos que o professor desenhou podem ser definidos como negativos em sua radicalidade, ou seja, na sua raiz. Assim como o termo ciência se confundia, por vezes, com o termo filosofia no século XIX, com a tendência geral de uma positivação do saber esses dois termos foram separados de modo a delimitar de modo mais claro a diferença entre o saber positivo e o saber não-positivo e o termo ciência parece hoje estar ligado a uma produção de saberes positivos. Veremos agora como a reflexão saussuriana aponta para o saber não-positivo, que pode ser percebido, por alguns, como uma reflexão filosófica. Apesar dessa ordem do não-positivo estar apresentada em todos os conceitos formulados pelo professor, como o signo, o sistema, a mutabilidade e a imutabilidade, a arbitrariedade, entre outros, esse caráter é muito mais evidente na teoria do valor, e por esta razão trataremos apenas do valor no presente artigo.

2. NEGATIVIDADE E DIFERENÇA

O termo valor designa, na teoria de Saussure, uma pluralidade de fatos. Primeiramente, podemos observar que o professor não estabeleceu, de início, uma diferença séria entre os termos: valor, sentido, significação. Mas ele disse que o valor passava a existir pela oposição que os signos estabelecem entre si. Podemos ler Saussure (1996: 134-135, grifos do autor): No interior de uma mesma língua, todas as palavras que exprimem ideias vizinhas se limitam reciprocamente: sinônimos como recear, temer, ter medo só têm valor próprio pela oposição [...] Assim, o valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia.
Normand (2009:27) nos aponta para alguns aspectos dessa formulação de Saussure. Primeiro podemos perceber que o professor não delimita a unidade com que trabalha, mas oferece como solução a pura oposição de valores; que ele nos oferece uma análise puramente intelectual dos dados da língua por meio de um procedimento empírico de comparação. Mas esse procedimento de comparar conduz a resultados negativos, o que parece algo contraditório. As diferenças delimitam ideias próximas, ou, dito de outra forma, os valores delimitam-se reciprocamente e formam um sistema.

3. UMA FILOSOFIA DA LÍNGUA OU DA LINGUAGEM?

Falar de uma filosofia da linguagem pode causar um estranhamento inicial quando lembramos que Saussure escolheu a língua como objeto de estudo e não a linguagem. Essa escolha, inclusive, permitiu à Linguística erigir-se como ciência piloto no início do século XX. Voltemos ao texto publicado por Bally e Sechehaye ao apresentar a língua como objeto: “É necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem”. (SAUSSURE, 1996, p. 16). Ao realizar esse gesto inaugural, o professor o faz em relação à complexidade da linguagem, que “tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita”. Todas as razões elencadas por Saussure para justificar a escolha pela língua repousam numa contraposição à complexidade que a linguagem apresenta, desse modo, podemos entender que escolher a língua como objeto ao invés da linguagem aponta para uma preocupação com a linguagem, pois a língua serviria de norma ou modelo de outras manifestações da linguagem. Será que isto nos aponta a uma preocupação com a linguagem? O problema, aparentemente resolvido de modo simples com a frase acima citada da edição de 1916 é que “o ponto de vista que cria o objeto” (1996: 15), ou seja, não há para o linguista um objeto pré-defino, como outras ciências podem ter. A obscuridade do objeto é algo que leva o professor a falar de uma impossibilidade de obter um ponto de partida evidente, Saussure (2002: 240) diz: Unde exoriar? – É essa a questão pouco pretensiosa e, até mesmo, terrivelmente positiva e modesta que se pode colocar antes de tentar abordar, por algum ponto, a substância deslizante da língua. Se o que pretendo dizer a respeito disso é verdade, não há um único ponto de partida evidente. Desse modo percebemos uma inquietação para chegar a uma definição simples do que seria o objeto de estudo do linguista. Essa inquietação advém da ideia de que não há como apresentar uma visão “positiva” do saber sobre a língua ou mesmo sobre a linguagem. Definir o que é negativo e diferencial é inicialmente perturbador. A impossibilidade de verificação leva a uma inquietação desesperadora para muitos. Concluir que a perspectiva empirista não pode dar conta da reflexão saussuriana, apesar de muitos critérios empiristas serem satisfeitos, como um método e um objeto, trata-se de outro saber, trata-se de pura forma, sem substância. Entendemos que a ao escrever sobre a língua, o professor tinha como alvo maior a linguagem em toda a sua complexidade. Que língua e linguagem se delimitam reciprocamente. Ainda nos perguntamos: Saussure supõe uma reflexão de amplitude filosófica?

4. FILOSOFIA E LINGUAGEM

Os filósofos sempre se perguntaram como a linguagem se relaciona com o mundo e de que modo a linguagem se relaciona com a mente humana, o que constitui os sentidos ou qual a importância da linguagem no processo de nossa constituição como seres humanos. A Filosofia da Linguagem é uma disciplina que se ocupa hoje de tais questionamentos. Podemos afirmar que a linguagem pertence à filosofia se concluirmos que este é o primeiro conhecimento humano e que esta relação entre linguagem e conhecimento sempre esteve posta a nossa frente. Sobre as principais correntes da Filosofia da Linguagem Normand (2009: 108) nos apresenta que a linguagem sempre concerniu à filosofia. A autora nos lembra do Círculo de Viena e da necessidade de adotar um ponto de vista outro sobre a linguagem se tratando de filosofia da linguagem, o da significação e do sentido, tanto ao tratar da epistemologia como da metafísica. Interessante lembrar que Bouquet (2002) aponta para a presença de uma base metafísica na reflexão saussuriana, tanto quanto a presença de questões epistemológicas. Nomes como T. Hobbes, P. Feyerabend, Frege, Hacking, Locke, Descartes, De Popper, Kant, Leibnitz, Foucault, entre muitos outros abraçam discussão que remota ao Menon de Platão, onde Sócrates dialoga com um jovem escravo sobre o conhecimento da geometria e não possui um ponto final. A reflexão saussuriana nos dá a resposta para esta constante reformulação e problematização: trata-se de forma e não de substância. Isto implica numa reformulação constante, já que não há uma substância diretamente verificável. Esta questão não se esgota nessas poucas palavras aqui colocadas, mas nos leva a reler a reflexão de Saussure de um novo ponto de vista, que abarca o sentido, e para alguns, o sujeito falante, como Bouquet (2002:301) nos diz: Nem substancialismo aristotélico, nem esquematismo kantiano, a metafísica de Saussure se manifesta como o abre-te sésamo que permite pensar no elo de três anéis que se ligam dois a dois pela intermediação do terceiro – sendo esses três anéis Um de todas as coisas, a álgebra da língua e o espírito do homem. Nisso a semântica de Saussure ilumina, provavelmente, além dos horizontes epistemológicos, horizontes metafísicos virgens ainda. Observamos que apesar da reflexão saussuriana apresentar uma dimensão filosófica, não podemos deixar de notar que a escolha do objeto permitiu tratar a Linguística como ciência. Talvez, como diz Dosse (2007: 81), “mais que um método e menos que uma filosofia”, é isto que Saussure inaugura. Dessa perspectiva o discurso Saussuriano é fruto de uma discussão positivista do seu tempo. E não podemos fechar os olhos para a postura científica dos escritos de Saussure do mesmo modo que não podemos fechar os olhos para a dimensão filosófica dos construtos teóricos do professor. A oscilação entre o saber cientifico e filosófico que há nas palavras escritas por Saussure, produz um saber não-positivo que confere à Linguística a etiqueta de Ciência que se inscreve na história da Linguística como gesto inaugural de um saber positivo sobre os fenômenos da linguagem humana.

Fonte: BASÍLIO, Raquel. Saussure: uma filosofia da linguística?. ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010. [www.revel.inf.br].

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